Bacurau - Crítica

A UNIÃO FAZ A FORÇA NO NORDESTERN MODERNO


Escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles o filme nacional, que recebeu prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, Bacurau chega (como dizemos em alguns lugares do nordeste) como uma voadora na caixa dos peitos. Do inicio ao fim, com uma trama envolvente, rica, violenta e misteriosa, Bacurau prende o espectador e deixa um sorriso no rosto ao final da sessão.

Vitrine Filmes/Divulgação


A história, sem spoilers, é sobre um local no nordeste brasileiro, distópico, que misteriosamente some dos mapas digitais e nela acontecem uma série de coisas estranhas e os moradores do local precisam se salvar de uma ameaça invasora.

Assumidamente um filme de gênero, Bacurau transita nas mais variadas formas de narrar uma história, com pitadas de ficção científica, momentos de suspenses, terror, ação e, principalmente, western. O gênero, muito popular na década de 60 nos Estados Unidos e Itália, domina a obra de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, fazendo desta, como cunhou o crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva, um nordestern na sua mais pura forma. Me atrevendo ainda mais, Bacurau é um Nordestern Moderno. E não somente pelo típico bangue-bangue, mas também pelas escolhas estéticas de planos e movimentação de câmera. E não se resume a isso, como dito, Bacurau transita nas mais variadas formas de narrar e os elementos terror/suspense são expressos em sua montagem e narrativa, bebendo muito da fonte de John Carpenter (que é inclusive homenageado duplamente no filme) sem medo de cortes ou zoom ou transições ou “tosqueiras”. Ele respira a cultura nordestina, modernizando-as nos cinemas (sim, existe smartphone e tablet no sertão minha gente), ao passo que abraça os filmes dos anos 60, 70 e 80 inserindo-os nesse contexto do interior do nordeste.

O que diferencia Bacurau de muitos filmes nacionais é sua coragem e ousadia em fazer. E não somente nacionais, restrinjo a esta área aqui somente por ela ser a área em que o filme é realizado. Não se dá um passo atrás ou não se sugere uma violência. A violência é mostrada. Nas suas mais diversas formas. A violência e a selvageria caminham lado a lado nesta obra, deixando as perguntas: Quem são os violentos? Quem são os selvagens? Quem define isso? Ainda sobre a violência, há sua comparação e indagação pelo tesão em matar. Matar para quê? Para quê tanta violência? Fazendo desta um dos pontos altos do filme, tanto pela sua coragem quanto pelas suas próprias indagações, criadas pelos próprios realizadores.

O tom político é muito presente e engrandece o filme. Sem precisar apontar dedos ou ser explicito, os roteiristas/diretores entregam ao público sua visão do Brasil de sempre, como os mesmos dizem. Não é uma critica ao atual governo, é uma critica aos governos de sempre. Crítica essa que é quase levada às ultimas consequências, trazendo como um dos personagens um prefeito oportunista e mostrando como a união do povo de Bacurau interfere nos interesses deste. Uma crítica também a sociedade, a aqueles que não se acham irmãos de terra dos “diferentes”. Pior, que se acham semelhantes a quem não são. A diferença nesse modo de pensar dita o desfecho de cada um, abraçando a união como ponto fundamental para a sobrevivência. A união, como outro ponto alto da obra, de forma democrática é o que faz a pequena cidade ser como é. Nada é imposto a eles, tudo é recomendado, mas a escolha é de cada um e, claro, as escolhas são conscientes e de bem comum em boa parte das vezes.

A maneira como Kleber Mendonça e Juliano Dornelles constroem os personagens também é curiosa e favorável à trama. O espectador inicia o filme pensando uma coisa, mas é jogado para diversas outras em caminhos muito diferentes. É difícil encontrar um personagem protagonista, aquele cujo arco dramático gira em torno e que sofre uma mudança ao longo da narrativa. Assim, quem assume tal papel de protagonismo, e se torna personagem na obra, é a própria cidade. Todos os personagens da narrativa constituem esse protagonista e o faz ter seu arco dramático ao longo do filme. São muitos personagens (boa parte ficará de fora aqui, mas também tendo suas relevâncias como o DJ Urso, ou a Forasteira, ou Kate, ou o violeiro), mas dentre todos eles, destacam-se Domingas, interpretada brilhantemente pela Sônia Braga, uma médica com suas “complicações” e desejos; Acássio (Thomas Aquino), um homem da cidadezinha que usa o pseudônimo de Pacote em seus assassinatos; Teresa (Bárbara Colen), uma das netas egressas de uma matriarca de Bacurau que faleceu aos 94 anos, recém-chegada em Bacurau. Ela é a personagem de entrada, que basicamente apresenta ao espectador a cidade e seus respectivos moradores; Michael (Udo Kier), um alemão/norte-americano líder de um grupo de invasores, frio, calculista e, por que não, louco; Plínio (Wilson Rabelo), o professor com métodos de ensino que lembram Paulo Freire e que não abre mão do uso da tecnologia com os alunos, mas que não se torna refém dela. Plínio é o “termômetro” da cidade, ele é o interlocutor de Bacurau, a cabeça pensante; e Lunga (Silvero Pereira), uma espécie de neo-cangaceiro procurado por todo Brasil que tem presença forte nas cenas em que está seja pelo seu poderosíssimo olhar, seja pela sua impressionante vestimenta.

Usando o ultimo personagem citado como gancho, uma das escolhas que fazem o elemento nordestern ter mais força (e me faz ter a visão de um nordestern moderno) é as referencias ao próprio cangaço. Período vivido no nordeste brasileiro com força no inicio do século XX, onde bandos vagavam por justiça nas cidades por falta de emprego, alimento, etc. O próprio Lunga é a personificação de um cangaceiro, pelo fato de ser procurado por uma força maior e receber apoio e acolhimento dos moradores de Bacurau, dando a entender que ele é uma ajuda àquele povo e questionando à quem os procura. Sendo também a personificação da força e da esperança entre os moradores, através do olhar, fazendo temer àqueles que querem ser temidos. Não só em Lunga há essa referência ao cangaço, mas também em outros pontos do filme como as histórias espalhadas pelo museu da pequena cidade e os tuneis, mostrados em determinado momento do filme, que eram utilizados na época (do cangaço) como saídas de emergência para Lampião e seus comparsas (na cidade de Missão Velha).

Um filme onde até as poucas (mas pontuais) músicas são influentes para narrativa, seja quando ecoa Gal Costa, seja quando ecoa Sérgio Ricardo e, até mesmo, quando ecoa John Carpenter. Este ultimo é muito lindo em cena pois traz a mistura proposta pelos diretores, o cinema “norte-americano” com temas regionais. Há também a canção Requiem Para Matraga de Geraldo Vandré que toca em dois momentos específicos do filme, em duas ações opostas mas que ligam-se através da musica (e de sua forte letra).

Rico em sua estética e narrativa, Bacurau é uma obra importante para o Brasil atual (e para o Brasil daqui a alguns anos, como mesmo diz o filme) por falar sobre nordeste, sobre união e sobre cinema. Um filme que respira esses três elementos sem deixar a peteca cair, com muita maestria dos diretores e ousadia dos mesmos. Nota 10 para tudo que há nesse filme. E viva Bacurau, viva o Nordeste!

Bacurau estreia dia 29 de Agosto nos cinemas de todo Brasil.

(Por Kauan Oliveira)

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